Porquê?

Porquê fazer uma peregrinação?

Porque se quer aprender... Aprender sobre Quem somos, o Que somos e Como somos...
Porque se quer aprender... Aprender sobre para Onde vamos, de Onde viemos e Onde chegaremos...
Porque se quer aprender... Aprender sobre os nossos Limites, as nossas Potencialidades e os nossos Valores...


Há muito para aprender numa peregrinação... O que eu mais queria, e foi isso que pedi a Deus (que é meu Amigo), era compreender o Amor. Meio ano depois do termo do périplo posso dizer: não compreendo tanto o Amor como quereria mas que o vivi, Vivi.

Mas o que aprendi, e o que confirmei, pois já o sabia, será explanado mais tarde...

Onde começou?



No dia 8 de Setembro de 2005 comprei esta pedra de Quatzo Rosa - e uma outra - numa tenda à beira do Farol do Cabo Finisterra, o "fim da terra", assim denominado por ser o pedaço de terra mais a Ocidente em Espanha (creio que já na Idade Média, Portugal era tão insignificante que não foi tido em consideração nesta crença).

Só mais tarde soube duma velha tradição de ver ali o pôr-do-Sol e queimar uma peça de roupa numa fogueira, custume que simboliza o terminar de uma vida e o recomeço de outra (não esqueçer que Finisterra é o termo - opcional - do percurso do peregrino). Se por um lado fiquei desiludido por não participar desta tradição centenária, por outro, também não me chateei muito: eu não era peregrino. Eu era Romeiro. Eu não estava a terminar uma viajem, mas sim a começá-la.


Depois de uma hora sentado numa rocha a ouvir o mar e a escutar a Deus neste belo cenário, comprei as ditas pedras e parti em direcção Vila com o mesmo nome, a fim de me alojar (pensava eu) no Albergue de peregrinos. Decidi que a pedra de quartzo rosa, esotericamente representante do Amor, viajaria comigo até Roma e que, na Praça de São Pedro a deixaria. É importante ter objectivos e esse passou a ser o meu. A outra pedra seria deixada ao longo do Caminho. Soube isto logo que a comprei, e a única dúvida era se a daria a alguém ou se a deixaria nalgum sítio para que a apanhassem...

O primeiro dia...


De volta à Vila de Finisterra, dirigi-me ao Albelgue. Já tinha a Credencial de Peregrino (para a conseguir tive que dormir uma noite abrigado debaixo dum arco na parte velha da cidade de Tui - contarei mais tarde) mas estaestava, naturalmente, sem qualquer carimbo.

No Albergue foi me explicado: sem os carimbos dos dois albergues que permeiam o espaço entre Santiago e Finisterra não era permitido pernoitar. Isto servia evitar que os peregrinos que faziam este caminho de autocarro - como eu havia feito - ocupassem as camas que caminhantes extenuados pelas duas dezenas de quilómetros tanto valorizavam.

Um simpático casal de peregrinos (em bicicleta) portugueses disseram-me que haviam dormido a noite anterior na praia a um quilómetro dali. Contaram-me também que lá estavam acampados um grupo grande de peregrinos "hippies" e que até tinham um grande toldo preso às rochas para os que não tinham tenda, como era o meu caso. O dia estava claro e não se adivinhava chuva, se bem que na Galiza nunca se sabe...

Ainda no Albergue um francês, de seu nome Bohémon, que me havia visto de manhã em Santiago abordou-me perguntando-me o que eu faria. Também ele tinha vindo de autocarro até ali e tal como eu estava sem prespectivas para essa noite. Contei-lhe o que me haviam dito os meus compatriotas e disse-lhe que me entusiasmava a ideia de passar a noite a ouvir o marulho. Ele achou bem e explicou-me que viajava há ja algum tempo sem dinheiro. Esperava que lhe disponibilizassem no banco algum dinheiro que tinha a receber (que não apareceu até à manhã seguinte, quando me despedi dele).

Fomos umar uma na marina, e estavamos a beber uma cerveja num bar à beira da festa da vila (o belo do Verão sempre tem festas) quando começou a pingar... Rezamos pelo toldo na praia e pela boa vontade dos donos do mesmo (não rezamos mas podiamos ter rezado... hehehe).

Mas Deus é nosso amigo e depois de comprar comida e vinho ainda vimos o pôr-do-Sol na dita praia.

A primeira noite...

A primeira noite começou bem. Depois de apreciar o pôr-do-Sol dirigimo-nos, o Bohémon e eu, ao grupo estabelecido à beira-mar. Como é normal no meio peregrino, fomos fraternalmente recebidos pela dúzia de pessoas qua ali estavam há pelo menos vários dias.

Quase todos - senão todos - eram peregrinos que, tendo chegado ao termo do caminho, não queriam voltar ao mundo normal. Não há peregrino que não sinta vontade de não voltar para a vidinha limitada que na geralidade as pessoas vivem. Um peregrino é alguém livre de imposições, de horários, de pressões socio-culturais. No fundo, está livre de tensões externas e as suas únicas limitações são as que são verdadeiramente suas, as que ele impôs a si mesmo. É aqui que reside a possibilidade de auto-crescimento/conhecimento: livre de coacções extrínsecas, fica o espaço para olhar para dentro e ver o que Somos. As emoções tornam-se mais evidentes, os medos empolam-se, as alegrias dilatam-se. Esta conciência alargada torna a evolução do Ser humano exponencialmente mais célere.

Partilhamos comida e bebida - a deles e a nossa - e a maioria deles foram até à vila de modo a apreciar a festa da vila. Quem ficou, ficou à beira da fogueira partilhando estórias e filosofias. Como sempre aconteceu ao longo de toda a minha viagem, o espanto foi generalizado quando expliquei o meu objectivo: deixar a pedra rosa na Praça de São Pedro. Logicamente, depois do espanto veio a incredulidade. -Quantos quilómetros são? -Por onde vais? -Quanto tempo demorarás? Três mil... Caminho francês até França, depois Lourdes e mais não sei... Espero estar de volta a casa pelo Natal... Já tinha aprendido anteriormente que é necessário algum cuidado com a influência que crenças dos outros, especialmente quando são de incredulidade, desconfiança ou dúvida. Nada que o pensamento positivo e a Fé não ultrapassem facilmente.

Entretanto chegou a hora do descanso. Quem tinha tenda aninhou-se nela e quem não tinha foi para debaixo do toldo. Eu, que tinha apenas um saco-cama (o Bohémon nem saco-cama tinha), ainda me deitei alí mas depois de algum tempo resolvi ir dormir para o meio da praia. A festa na vila não ia durar toda a noite e, se ficasse longe do ajuntamento, certamente não acordaria com a chegada dos convivas. Encontrei um sítio onde ouvia água a escorrer pelas rochas e a passar ao meu lado em direcção ao mar. Gostei e estendi o saco-cama lá. Realmente não dei pela chegada dos outros mas acordei quando começou a chover. Deixei-me estar e voltei a dormir na esperança que a chuva parasse rapidamente. Despertei quando a água atravessou o saco-cama. Eu e a minha viagem haviamos sido baptizados...

Tive que me levantar e abrigar-me. Faltavam ainda duas horas para nascer o Sol mas não voltei a dormir...

Um novo nome...

Quando nasceu o Sol fui dar um passeio pela praia. O mar estava revolto, havia vento e alguma chuva. Mas não me importei. Precisava encontrar a coragem para não voltar para casa. Tinha uma viagem difícil pela frente. As praias de Finisterra são conhecidas pelas suas conhas, que são o símbolo por excelência do peregrino. Mas eu percorri toda a praia sem encontrar uma só vieira. Mais tarde explicaram-me: as conhas existem mas apenas do outro lado do istmo. Na praia do Norte não há vieiras. Desenhei um grande "Ultreia" na areia e voltei ao acampamento para me preparar para partir. Estava a conversar com o Bohémon quando ele gritou: "Olha!!!" apontando para o mar. Voltei-me e vi cinco ou seis golfinhos que literalmente surfavam as ondas a trinta ou quarenta metros da beira-mar. Corremos até à agua, sem lá entrarmos, é claro, e ficamos a admirar o espectáculo durante os três ou quatro minutos que ele durou. Que belo momento, aquele. Mais uma vez, acreditei que Deus me havia abençoado. Ofereçi-me para pagar o pequeno-almoço meu recente amigo na vila e ele explicou-me que ia ficar por alí mais alguns dias, esperando pelo tal dinheiro...

Já na vila, contou-me uma bricadeira que havia realizado com os seus colegas caminhantes ao longo da sua peregrinação, uma espécie de exercício espiritual: todos os dias, davam a si mesmos, ou uns aos outros um novo nome. Simbolizando um renascimento diário, um desligar do passado e um novo futuro, esta foi uma ideia que me agradou. Não me lembro que nome dei naquele dia ao Bohémon, mas lembro-me perfeitamente do que ele me deu: Thorgal, um guerreiro nórdico, filho de Thor - Deus do trovão - e Aegir - Deusa do mar - forte, ágil, inteligente e mas com um forte sentido humanitário... Como percebi agora Thorgal não existia na mitologia Nórdica mas apenas no imaginário moderno: é uma personagem de uma banda desenhada criada nos anos setenta... Foi assim que me despedi do Bohémon.

Com um novo nome, começei uma nova etapa da minha existência. Foi aqui que senti verdadeiramente como estando a iniciar a longa caminhada até Roma...

As primeiras lágrimas...


Prá frente é que é caminho... Saí da vila com a mochila às costas, o bastão na mão e os fones nos ouvidos. Tinha decidido não levar máquina fotográfica por causa da responsabilidade, do peso, do espaço e das pihas. Mas graças a Deus que levei o leitor mp3. Aliás, quando o comprei já estava a pensar nesta viagem e na ajuda que ele me ia dar... Como tantas vezes pensei durante esta viagem, é bom poder viajar, mas é ainda melhor poder fazê-lo com uma boa banda sonora.

Uma hora depois de sair de Finisterra, pela primeira vez em toda a minha vida, começei a chorar. Mas não era choro de tristeza, nem de medo, nem de saudade. Esses não eram inéditos... Eram lágrimas de alegria! Nunca, em toda a minha existência, me lembro de chorar por estar feliz, até àquela ocasião. Estava feliz por estar alí, feliz por estar a perseguir e realizar um sonho, feliz por me sentir no sítio certo, na hora certa, feliz por ter tudo quanto precisava, feliz por ter o Mundo à minha frente...

Os primeiros companheiros...

Nesse dia, ao princípio da tarde, encontrei um casal de jovens (amigos e colegas de escola na Andaluzia) muito sui generis: uma espanhola e um brasileiro. Não tendo muito tempo disponível, decidiram fazer o percurso Finisterra-Santiago. Para esta decisão influenciou também a fraca aptidão física da menina. Ele, desportista nato, mas cavalheiro preferiria um percurso maior. Depois de lhes contar porque me chamava Thorgal, também eles se atribuiram novos nomes. Infelizmente não me lembro nem dos novos nem dos velhos. Eles eram simpatiquíssimos e viajamos juntos até chegarmos ao albergue de Oliveiroa.

Estranho foi o facto de depois de uma hora a conversar em castelhano, quando pela primeira vez o rapaz me fala em português, me parecer que me falava outra pessoa. De tão surpreendido, parei e olhei para ele. Era mesmo ele mas parecia-me outro... Esta foi uma sensação que voltei a sentir com outras pessoas, mas nunca tão intensamente como alí. Como é possível que a língua falada influêncie no julgamento de uma personalidade? Não sei mas que achei estranho, achei.

O primeiro ensinamento espiritual comprovado na prática: sempre se recebe o que se dá. Passo a explicar... Trinta e cinco quilómetros não são uma jornada fácil para um experiente caminheiro e menos ainda para alguém sem qualquer hábito de exercício físico. Apartir de meio do percurso a rapariga começou a acusar o cansaço. As mochilas deles eram de boa qualidade mas estavam muito pesadas. Tinham provisões para os três dias, ou quase, que iam demorar até Santiago. O peso, o calor, as subidas e as pedras no trilho estavam a dificultar muito o caminho à miúda e, mesmo depois de várias paragens a pedido dela, o animo dela detiorava-se a olhos vistos. Estava a anoitecer e faltavam entre cinco a dez quilómetros para atingir Oliveiroa quando ela se recusou a andar mais. Sentou-se à beira da estrada e, por ela, ficaria alí até que alguém a viesse buscar (carregar). As nossas palavras de apoio e incentivo já não surtiam efeito. Tivemos que passar acção. Pegámos na mochila dela, um em cada alsa e convençemo-la a seguir-nos. Resultou! Parece que dez quilos a menos sempre fazem alguma diferença. Mas nem sempre é assim: para mim e para o outro aquele peso extra foi anormalmente fácil de carregar. Se estavamos cansados antes daquela última paragem agora parecia estarmos mais frescos. Ao partilharmos da nossa força com quem dela precisava, recebemos força. O mundo material, por muito que não pareça, funciona como o mundo das ideias: ao partilhar uma ideia não se fica sem ela, mas sim, ela fortalece-se...

Um corvo debaixo de chuva...

No dia seguinte, iamos continuar o percurso juntos. Mas, por causa do meu gosto (eufemismo para vício) pelo café que eles não partilhavam, deixei-os no albergue para ir ao bar onde havia jantado na noite precedente. Encontrar-nos-íamos pouco depois no caminho. No bar comprei mantimentos e pedi direcções para encontar o caminho: "vira à direita depois da ponte"...

O problema de se caminhar em sentido oposto ao natural nos caminhos de Santiago é que, as setas, como estas que indicam a direita como direcção a seguir, apontam para onde segue o percurso, mas nem sempre é obvio de onde ele vem. A experiência acaba por ensinar a olhar para os sinais: pégadas de botas, orientação dos marcos (que tendem a estar de face diretamente virada para de onde vêm os peregrinos), ou esperar até que venha alguém com uma mochila às costas - de onde vier é para onde vamos... Há ainda duas alternativas menos fáceis: a primeira, procurar e perguntar a alguém de onde vem o Caminho (o que é uma chatice, pois sempre temos que explicar porque vamos na "direcção errada", normalmente depois do nos indicarem a rota de onde viemos umas poucas de vezes - lembrem-se que as dificuldades linguísticas, apesar de ténues, ainda existem) e a segunda, perguntar à nossa própria intuição e seguir a sua orientação (creio não ser necessário explicar os possíveis inconvenientes desta escolha).

Saí do restaurante, segui a estrada passando por uma quase imperceptível ponte e cheguei a um cruzamento. Alí, achei estranho a inexistência de setas ou marcos, mas virei à direita. Alí, lembrei-me que não tinha ainda nome... Pedi a Deus que me desse um sinal e, quase de imediato, ouvi o gralhar de um corvo. Corvo!

Só uma hora, cinco quilómetros em estrada e nenhum peregrino depois é que tive a certeza que estava fora do Caminho... Voltar para trás era demasiado frustante e decidi continuar por estrada, com a ajuda do mapa da península ibérica que tinha.

Aos primeiros aquaçeiros ainda me abriguei até que passassem mas se continuasse assim nunca chegaria nesse dia a Negreira, único albergue entre Oliveiroa e Santiago (na foto). Na primeira vila que encontrei comprei um verdadeiro oleado, daqueles verde-azeitona pelos quais a água não passa, bem melhor que a capa plástica que trazia que, apesar de permitir a saída da humidade da transpiração também permitia a entrada de água em caso de chuva forte.

Foi um dia difícil, com chuva, cansaço, alguma desorientação e ainda mais chuva. Sózinho? Nããão... Deus sempre está comigo!

Viajante

No dia seguinte, de volta ao verdadeiro Caminho, momiei-me Viajante. Como a maior parte das pessoas que conheço, adoro viajar. Santiago estava a uns meros 30 km. Deixei a meio caminho uma mensagem com o meu e-mail ao casal de amigos que havia conhecido dois dias antes, na esperança que não houvessem desistido, hipótese provavél devido ao cansaço e falta de motivação demostrado pela espanhola e, também, pela inesxistência de resposta à dita mensagem. Infelizmente nunca chegamos a trocar contactos especialmente porque não esperavamos desencontrarmo-nos...
A jornada não estava propriamente solarenga mas, pelo menos, não se repetiu a chuva intensa do dia anterior.
A perspectiva de voltar a entrar andando em Santiago, encheu-me de alegria e nostalgia por aquela que havia sido a minha primeira grande peregrinação: Entroncamento-Santiago. 600 Km que não me satisfizeram, pelo que decidi continuar para Roma e fazer a segunda das três peregrinações sagradas da Idade Média. É claro que não a completei e por isso voltei a Espanha para completar o que havia sido iniciado.

Impõe-se, parece-me, um fashback explicativo dos antecedentes desta Romagem...