A primeira noite...

A primeira noite começou bem. Depois de apreciar o pôr-do-Sol dirigimo-nos, o Bohémon e eu, ao grupo estabelecido à beira-mar. Como é normal no meio peregrino, fomos fraternalmente recebidos pela dúzia de pessoas qua ali estavam há pelo menos vários dias.

Quase todos - senão todos - eram peregrinos que, tendo chegado ao termo do caminho, não queriam voltar ao mundo normal. Não há peregrino que não sinta vontade de não voltar para a vidinha limitada que na geralidade as pessoas vivem. Um peregrino é alguém livre de imposições, de horários, de pressões socio-culturais. No fundo, está livre de tensões externas e as suas únicas limitações são as que são verdadeiramente suas, as que ele impôs a si mesmo. É aqui que reside a possibilidade de auto-crescimento/conhecimento: livre de coacções extrínsecas, fica o espaço para olhar para dentro e ver o que Somos. As emoções tornam-se mais evidentes, os medos empolam-se, as alegrias dilatam-se. Esta conciência alargada torna a evolução do Ser humano exponencialmente mais célere.

Partilhamos comida e bebida - a deles e a nossa - e a maioria deles foram até à vila de modo a apreciar a festa da vila. Quem ficou, ficou à beira da fogueira partilhando estórias e filosofias. Como sempre aconteceu ao longo de toda a minha viagem, o espanto foi generalizado quando expliquei o meu objectivo: deixar a pedra rosa na Praça de São Pedro. Logicamente, depois do espanto veio a incredulidade. -Quantos quilómetros são? -Por onde vais? -Quanto tempo demorarás? Três mil... Caminho francês até França, depois Lourdes e mais não sei... Espero estar de volta a casa pelo Natal... Já tinha aprendido anteriormente que é necessário algum cuidado com a influência que crenças dos outros, especialmente quando são de incredulidade, desconfiança ou dúvida. Nada que o pensamento positivo e a Fé não ultrapassem facilmente.

Entretanto chegou a hora do descanso. Quem tinha tenda aninhou-se nela e quem não tinha foi para debaixo do toldo. Eu, que tinha apenas um saco-cama (o Bohémon nem saco-cama tinha), ainda me deitei alí mas depois de algum tempo resolvi ir dormir para o meio da praia. A festa na vila não ia durar toda a noite e, se ficasse longe do ajuntamento, certamente não acordaria com a chegada dos convivas. Encontrei um sítio onde ouvia água a escorrer pelas rochas e a passar ao meu lado em direcção ao mar. Gostei e estendi o saco-cama lá. Realmente não dei pela chegada dos outros mas acordei quando começou a chover. Deixei-me estar e voltei a dormir na esperança que a chuva parasse rapidamente. Despertei quando a água atravessou o saco-cama. Eu e a minha viagem haviamos sido baptizados...

Tive que me levantar e abrigar-me. Faltavam ainda duas horas para nascer o Sol mas não voltei a dormir...

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